Os primeiros registros arqueológicos de espinhas de bacalhau encontradas em poços medievais do interior da Inglaterra datam do início do século XI. Foi mais ou menos entre 1050 e 1100 que os peixes marinhos substituíram de vez os peixes de água doce, tornando-se cada vez mais frequentes na dieta da sociedade medieval. Os povos escandinavos (vikings) eram excelentes pescadores e no início passaram a fornecer peixes de alto mar para a dieta européia a preços bem baratos quando a pesca de água doce entrou em declínio. Cargas de bacalhau, halibuts, linguados de alto mar eram defumadas, secas e salgadas, e transportadas para atender os mercados da costa européia. Mesmo a aquicultura continental iniciada na França no fim do primeiro milênio para equilibrar a escassez dos estoques naturais acabou em abandono dos tanques de cultivo por conta da fartura e baixos preços dos peixes marinhos oriundos do Mar do Norte.
A baleia foi a primeira commodity da história do comércio global. A carne desses animais era salgada para consumo; a banha era usada na fritura e conservação dos alimentos; as barbatanas bucais eram usadas em armação de vestidos e espartilhos, que moldavam os corpos femininos asfixiados da corte européia; os intestinos davam o âmbar, o principal fixador de perfumes; toda a iluminação pública e doméstica nas capitais e vilas da Europa era feita a base de óleo de mamíferos marinhos, bem como a lubrificação de ferramentas e máquinas da Revolução Industrial. Ironicamente, se não fosse a descoberta do petróleo, hoje o maior vilão da contaminação atmosférica e das mudanças climáticas globais, talvez nós não veríamos mais nenhuma baleia ou foquinha sequer no Animal Planet. Só os seus esqueletos e pinturas expostas nos museus de história natural.
A caça baleeira começou nos séculos IX e X nos mares frios da Europa e da Escandinávia. Inicialmente era praticada somente na costa, tal era a abundância de baleias nas águas do Mar do Norte e a facilidade em avistá-las. O declínio das populações costeiras obrigou a caça a se aventurar em águas mais distantes e profundas, usando embarcações baleeiras adaptadas. Por volta do século XVI, quando o Brasil tinha acabado de ser descoberto, as baleias já eram raras nos mares da Europa e Escandinávia. As tentativas de descoberta de uma passagem pelo Oceano Ártico para acelerar o comércio entre a Europa e a China, na época o maior mercado de especiarias, sedas, peles e tudo o que interessava a sociedade européia de então, trouxe a notícia da fartura nos mares do Novo Mundo. Registros dos exploradores da época mencionam milhares de baleias em baías e fiordes do Atlântico Noroeste e do Oceano Ártico canadense, onde se concentravam para reproduzir.
Centenas de barcos transportando hordas de caçadores para a Terra Nova chegavam da Europa entre os meses de abril e maio em busca de carne e banha de baleias e de pequenos mamíferos de fácil captura. Acampamentos provisórios de processamento de óleo de baleia na região, outrora restritos aos povoados vikings na Groenlândia, se multiplicaram na América do Norte ao lado das colônias de reprodução. Milhões de baleias e focas foram caçadas e suas banhas, couro e carne foram transportadas para a Europa entre os séculos XVI e XIX.
Além das baleias, a voracidade do comércio predador não perdeu tempo e encontrou novas alternativas de caça de mamíferos marinhos em ilhas oceânicas do Pacífico Norte e Sul, onde centenas de milhares de focas peleteiras se agrupavam nos períodos reprodutivos. Mais de 3 milhões de focas peleteiras foram mortas em menos de 10 anos entre 1790 e 1800 por caçadores russos e americanos para retirar a pele que eram vendidas ao preço equivalente a quase US$100 dólares por unidade para a alta costura do império chinês. Essa foi a herança do que fazem ainda hoje indústrias de pesca canadense e norueguesas que caçam cerca de 300 mil bebezinhos brancos de focas do Ártico para fazer casacos de pele.
Pior foi o destino da “vaca marinha”, um paquiderme herbívoro comedor de algas, do mesmo grupo do nosso peixe boi, só que gigantesco, chegando a medir 9 metros e pesar 10 toneladas (a "Steller sea cow"), quase do tamanho de uma baleia. Um animal dócil e pouco ágil, como uma vaca aquática lenta e abobada, fácil de ser capturada. Em 1741 o explorador russo Vitor Bering e sua tripulação faminta e atacada pelo escorbuto (falta de vitamina C) chegaram as ilhas Commander próxima da costa oeste da Rússia. Após meses de exploração pelo Pacifico Norte em busca de uma passagem para o Oceano Atlântico, mais tarde batizada de Estreito de Bering, encontraram nessas ilhas uma população de vacas marinhas. Há séculos o animal já vinha sendo capturada por nativos que habitavam as costas do Pacifico norte desde o Japão até a Califórnia. Hoje argumenta-se que além da caça, as florestas de algas kelps, seu habitat natural e principal fonte de alimento, foram roídas e dizimadas por ouriços do mar que se proliferavam aos milhões devido a caça de seu predador natural, a lontra do mar, pelos mesmos nativos. Portanto, devido ao efeito conjunto da pressão pela caça e a escassez de alimento, já estavam quase extintas em meados do século XVIII. Havia sobrado uma única população nas Ilhas Commander que, infelizmente, estavam na rota de Bering e sua tripulação faminta. A notícia da descoberta de uma animal cuja gordura produzia um óleo combustível que não fumaceava e nem fedia tanto quanto o óleo de baleia (i.é., era a gasolina “premium” da época) se espalhou entre os caçadores europeus que todos os anos caçavam centenas desses animais. Em 27 anos extinguiram a única colônia remanescente após séculos de declínio da população. Me arrisco a dizer que a vaca do mar talvez tenha sido a primeira vítima da extinção da megafauna marinha pelo homem. Não só mamíferos e grandes peixes eram alvos da pesca no Novo Mundo. As ilhas caribeñas, como as Tortugas fantasiadas no filme Piratas do Caribe, não eram apenas reduto de corsários e condenados que lá concentravam seus saques e preparavam novos ataques aos navios mercantes. Também eram verdadeiros açougues de tartarugas. Todos os anos centenas de tartarugas eram capturadas nas praias e mantidas em currais improvisados nos porões dos navios por várias semanas sem água e alimento, como fonte de carne fresca durante as jornadas de pilhagem e travessias oceânicas. Além disso, os primeiros colonizadores das ilhas da América Central não tinham muita infraestrutura agrícola e dependiam da caça e pesca. Na Jamaica haviam cerca de 150 empregos dedicados exclusivamente à caça e comércio de tartarugas, geralmente fêmeas desovando. Entre 1688 e 1730 foram mortas cerca de 30 mil tartarugas todos os anos nas ilhas jamaicanas e exportadas para todas as colônias caribenhas. Cientistas atuais, com base em modelos ecológicos que consideram a capacidade suporte do ecossistema caribeño, estimaram que havia entre 50 e 100 milhões de tartarugas desovando no mar do Caribe antes da conquista pelos ingleses no século XVIII. Nas ilhas do Pacífico a mesma história se repetiu. Nas Galápagos, por exemplo, as tartarugas terrestres já estavam ameaçadas de extinção quando Darwin lá chegou a tempo de usá-las como um dos exemplos de sua teoria da evolução.
Em meados do século XVII o comércio global de pesca e caça marítima descobriu os estoques intocados do Atlântico Sul, especificamente nos mares frios da Patagônia. Enquanto os portugueses concentravam suas atividades de exploração de madeira, ouro, pedras preciosas e escravos africanos no Brasil Colônia, caçadores ingleses, holandeses passavam ao largo com um único objetivo: pescar e caçar mamíferos nos mares temperados do Atlântico Sul, espalhando-se rapidamente na direção das ilhas do Pacífico Sul. Os estoques mais remotos, o último a ser explorado já na segunda metade do século XIX devido a dificuldade de acesso, foram as focas do Oceano Antártico, porque os das ilhas do Pacífico e do Ártico já tinha ido pro pau há muito tempo.
A capacidade de predação do ser homem é insuperável. Após ter acabado de exterminar a maior parte da megafauna terrestre lá atrás no período neolítico, chegara a vez da megafauna marinha. Nos 1000 anos entre a Idade Média e o começo do século XIX a população mundial de baleias, focas, morsas e elefantes marinhos já estava reduzida a cerca de 10% dos estoques anteriores ao “antropoceno”.
Portanto, eu cada vez mais me pergunto: o que exatamente estamos protegendo com os movimentos conservacionistas, os defesos, as limitações de quotas, a criação de AMPs e outras medidas paliativas de gestão pesqueira? O que sobrou depois de séculos de exploração nos Oceanos de todo o planeta? Se for assim, precisamos fazer mais do que apenas lutar pela conservação da vida marinha que restou. Precisamos recuperar pelo menos parte do que já se perdeu e resgatar um pouco da biodiversidade marinha que nos foi legada pela natureza. Esse é o nosso maior desafio.
nossa, parabéns pelo texto!
ResponderExcluirRealmente é muito interessante esse texto.
ResponderExcluirValeu a pena ler. Muito legal.
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