domingo, 10 de julho de 2016

Baía de Guanabara: Livro-reportagem investiga fracasso na despoluição

Por Duda Menegassi
Depois de 20 anos, programa de despoluição da Baía de Guanabara só atingiu 25% de tratamento. Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

Faltando um mês para as Olimpíadas, todos os olhos se voltam para o Rio de Janeiro, palco dos Jogos e um dos cartões-postais do evento é a Baía de Guanabara que continua poluída após anos de promessas e metas. Jornalista ambiental há 10 anos, Emanuel Alencar lançou, no último dia 23, o livro “Baía de Guanabara – Descaso e Resistência”, através do qual fala sobre o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), criado há 20 anos, sem conseguir cumprir seu objetivo, e explica os desafios e caminhos para despoluição. O livro é parte de uma iniciativa da Fundação Alemã Heinrich Böll, em parceria com a editora Mórula, para investigar o Rio Olímpico.
Para Emanuel, os holofotes trazidos pelos Jogos Olímpicos podem ser um ponto de virada para a cidade, que ajude a colocar a baía de novo na roda de discussões e permita repensar as soluções para alcançar a despoluição. Segundo ele, é preciso investir na setorização do saneamento, na participação popular e, principalmente, na transparência das ações: “Precisamos abrir a caixa preta do saneamento do Rio de Janeiro”.

Leia a entrevista de ((o))eco com o autor:

Emanuel Alencar. Foto: Custodio Coimbra

((o))eco: Como foi o processo de pesquisa para escrever o livro?

Emanuel: Eu trabalhei entre 2007 e 2015 como repórter de O Globo cobrindo cidade e meio ambiente, mais voltado para o estado do Rio, e a Baía de Guanabara já era objeto de várias de minhas matérias. Era um tema que me interessava e não parti do zero, já tinha alguma apuração prévia feita, muita coisa que não saía nas matérias, ou porque não dava espaço ou porque o jornal não se interessava em ir muito além no assunto. Uma amiga minha conhecia o pessoal dessa Fundação Alemã Heinrich Böll, que é financiada pelo Partido Verde alemão, e me indicou para eles, porque eles queriam fazer uma série de trabalhos sobre o Rio de Janeiro, para construir um dossiê, disponível na web, em função dos Jogos Olímpicos. E eles queriam uma publicação atualizada sobre a Baía de Guanabara para discutir porque a baía ainda é tão suja depois de duas décadas do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG). Além do que eu já tinha apurado, fiz uma pesquisa em mais de 30 documentos, artigos científicos e relatórios, e entrevistas, por exemplo, com o coordenador do PDBG e com o gestor do PSAM [Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara], programa que está em vigor desde 2012 e que de alguma forma foi o sucessor do PDBG, embora tenha objetivos e atue em áreas diferentes. Demorei mais ou menos seis meses para escrever e a Fundação acrescentou informações e um infográfico sobre a situação de várias outras baías ao redor do mundo.

Os Jogos Olímpicos estão chegando e as promessas com relação à despoluição da Baía de Guanabara não foram cumpridas. Por quê?

"Consegui cálculos de engenheiros e estimativas do próprio PSAM que apontam que o índice de tratamento de esgoto na baía hoje está na ordem de 25 a 35%, não passa disso. Como falar em despoluir 80%? Não tem qualquer pé na realidade"

Para falar em despoluição é necessário avançar no tratamento do esgoto doméstico, o principal passivo ambiental. O PDBG nasceu com uma promessa inalcançável, pois mesmo que fosse todo implementado, com os recursos bem aplicados, não seria capaz de despoluir a Baía de Guanabara; tendo em vista que mais de um milhão e meio de pessoas sequer têm tratamento de esgoto em suas casas na bacia da Guanabara, um passivo muito maior que não se resolveria nem com um nem dois bilhões de dólares. O Axel Grael, que é vice-prefeito de Niterói e tem um olhar de ambientalista, estima que sejam necessários cerca de 5 bilhões de dólares para resolver o problema de saneamento da baía. E durante muito tempo a sociedade recebeu a informação de que a gente conseguiria despoluir a Baía de Guanabara aplicando apenas um dinheiro da ordem de um ou dois bilhões. Infelizmente, a sociedade acreditou e isso resultou num enorme descrédito na possibilidade de que a baía possa ser despoluída.
Falar em despoluição da baía em um prazo inferior a 25, 30 anos, é impossível. O fato do governo já ter abandonado o discurso de que seria possível a curto prazo recuperar a Baía de Guanabara é um ponto positivo, mas demorou para acontecer. O governo continua errando muito na divulgação dessa meta olímpica de 80% do tratamento dos esgotos. O governo do Sérgio Cabral, na época, insistiu muito nessa meta, dizendo que era viável. No livro, eu consegui cálculos de engenheiros e estimativas do próprio PSAM que apontam que o índice de tratamento de esgoto na baía hoje está na ordem de 25 a 35%, não passa disso. Como falar em despoluir 80%? Não tem qualquer pé na realidade.

Na sua opinião, qual o caminho para a despoluição e quais os maiores desafios para se chegar lá?

Existem algumas questões importantes para você conseguir caminhar com a despoluição. A primeira é a transparência. Não caminharemos enquanto as metas não forem auditadas, enquanto a CEDAE não for efetivamente regulada pela AGENERSA [Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro], algo que embora, oficialmente, tenha acontecido no ano passado, na prática ainda não ocorre. Não há um website onde a população possa acompanhar em tempo real o andamento das obras, como acontece na Baía de Chesapeake, onde a Universidade de Maryland acompanha as metas e o programa de despoluição desde seu começo, em 1983. A transparência é um ponto central para acabar com a falta do controle social e da participação pública. É preciso abrir a caixa preta do saneamento do Rio de Janeiro.
Outra questão que eu destaco é a setorização. O governo do Estado deveria apostar em obras por setor e abandonar essa ideia das grandes intervenções faraônicas e megalômanas. Temos o péssimo hábito de querer fazer tudo gigantesco, como a ETE Alegria, que deveria tratar 7mil litros por segundo, mas não trata nem 2 mil, pois falta tubulação ligando às casas das pessoas. Hoje as estações de tratamento de esgoto no entorno da Baía de Guanabara estão com aproximadamente metade das capacidades projetadas, mas infelizmente ainda há muitos bairros e casas com tratamento quase nulo de esgoto. É preciso tratar esgoto de região por região, bairro por bairro, pensar em sub-bacia por sub-bacia. Não adianta você querer dar conta de toda a bacia da Guanabara, onde vivem oito milhões de pessoas, e esquecer bairros e localidades menores, porque se você não for de pouquinho a pouquinho, jamais vai conseguir alcançar o todo.

Qual sua expectativa para o livro e para sua repercussão em tempos pré-Olímpicos?

O lançamento do livro foi no dia 23 de junho, no IAB [Instituto de Arquitetos do Brasil], e me surpreendeu bastante, pois mais de 200 pessoas compareceram e foram mais de 150 exemplares vendidos, algo raro para um livro com uma temática específica e um autor desconhecido. A mídia internacional está com os holofotes na Baía de Guanabara, mais do que a nossa mídia local. Eles querem saber se há algum risco para os velejadores, como está a situação da raia da competição olímpica e eles não entendem porque o esgoto ainda cai na Marina da Glória. Para eles é muito difícil entender como a gente gastou mais de um bilhão de dólares e a baía continua muito poluída. No livro eu tento deixar claro que a despoluição das baías não é algo simples, mesmo aquelas tidas como casos de sucesso como a Baía de Chesapeake, em Maryland, nos Estados Unidos, a baía de Sidney e a baía de Tóquio, ainda enfrentam algum tipo de poluição, mesmo depois de muitos anos de programa.

De que forma você vê a influência dos Jogos Olímpicos para a despoluição da baía?

"Falta um modelo de authority, como existe lá fora, onde há um gerente eleito pela sociedade com tempo de gestão definido e transparência das ações para reunir todos os assuntos relacionados à baía de Guanabara"

Embora não tenhamos cumprido a meta – e jamais cumpriríamos, porque a meta era impossível - acho que os Jogos Olímpicos estão ajudando a colocar o assunto de volta na roda. Para repensar e que seja um ponto de virada para a baía para que, daqui para frente, já tendo cometido tantos erros nas últimas décadas, a gente consiga pelo menos não os cometer mais. Tornar as informações mais transparentes, envolver a sociedade civil. A promessa do governo é colocar todas as informações disponíveis sobre o andamento dos programas de saneamento na baía em um website, mapear as principais fontes de poluição, os aterros e os lixões em torno da baía. Acho que as Olimpíadas trazem um holofote que pode ser um marco para caminharmos, desde que haja interesse político, que os governos não cometam mais erros de divulgação e comunicação e que os recursos sejam propriamente aplicados na despoluição. Nós temos órgãos de fiscalização cada vez mais atuantes, mas no caso específico do saneamento no Rio parece que as coisas são mais difíceis do que nas outras áreas.

Você ressalta no livro o uso da Baía de Guanabara como “estacionamento” de navios e plataformas do setor petroleiro. Na sua opinião por que esse aspecto da poluição da baía ainda não é discutido pela mídia ou pelos órgãos ambientais?

A baía de Guanabara reúne uma série de órgãos, cada um responsável por uma coisa. Se você tem uma mancha de óleo, a Marinha deve ser acionada; se tem derramamento de algum poluente de uma indústria na baía, o INEA [Instituto Estadual do Ambiente]; e o lixo doméstico dos municípios é responsabilidade das prefeituras. Tudo fica muito pulverizado e a comunicação de vazamento de óleo desses navios fica prejudicada. Normalmente a imprensa não tem sequer acesso ao que está acontecendo. São multi derramamentos pingadinhos dia a dia que nem chegam nos ouvidos da mídia. A falta de uma autoridade única para a baía, como ocorre em outras baías do mundo, impossibilita a centralização das informações que garante uma resposta rápida em caso de dano ambiental. Fica muito nas mãos da Marinha, da Capitania dos Portos e quando o órgão ambiental fica sabendo já aconteceu e não tem como investigar. Falta um modelo de authority, como existe lá fora, onde há um gerente eleito pela sociedade com tempo de gestão definido e transparência das ações para reunir todos os assuntos relacionados à baía de Guanabara. Hoje cada um cuida do seu, ninguém dialoga, não há troca de informações entre os diversos entes que atuam na baía.

Como que a experiência do dia a dia com o jornalismo ambiental te ajudou na hora de achar uma linguagem para o livro? Que público você pretende atingir?

Eu tive a ideia e o cuidado de evitar fazer um livro técnico ou que fosse difícil de entender. O objetivo era fazer um conteúdo acessível a todos, um livro-reportagem. Ele está bem didático, simples de ler, rápido, são apenas 124 páginas, com bastante espaçamento e infográficos. A ideia era fazer algo que se aproximasse do dia a dia das pessoas para mostrar que a baía é um reflexo do nosso modo de vida e não algo distante das pessoas. O pessoal da fundação que financiou o livro comprou exemplares para distribuir nas escolas públicas, para fazer essa divulgação como material didático mesmo. Não tive a presunção de fazer algo como o Elmo Amador, que escreveu dois volumes sobre a Baía de Guanabara, o “Caraterísticas geoambientais, formação e ecossistemas” e “Ocupação histórica e avaliação ambiental”, que compõem uma espécie de Bíblia sobre a baía e, inclusive, me ajudaram a escrever várias partes do livro. Meu objetivo maior era focar nos programas de despoluição e numa discussão sobre o porquê da baía ainda estar tão poluída depois de aplicados esses recursos ou previstas as aplicações. Trazer, portanto, um panorama geral e atualizado da baía, sem deixar de destacar suas belezas. Também tive esse cuidado de dizer que nem tudo está perdido, a baía ainda é bastante biodiversa e é única no mundo, não só pela beleza, mas pela sua capacidade de regeneração – de 12 a 12 dias, 50% do volume de suas águas são renovados por completo. Ainda tem muita vida na baía.

Como você vê a agenda política do Rio de Janeiro em relação aos assuntos ambientais?


Capa do livro


Ainda estamos muito atrasados, principalmente na participação popular nas discussões ambientais. Vejo poucos canais de diálogo, vejo o INEA e a Secretaria do Ambiente tomando algumas decisões importantes dentro de gabinetes a portas fechadas, e infelizmente não tenho visto muitos avanços nisso. As audiências públicas muitas vezes acabam se perdendo em discussões estéreis, em denuncismos, um apontando dedo na cara do outro, com as questões importantes deixadas em segundo plano. A gente está muito atrás de estados como Santa Catarina e Paraná nesse protagonismo social nas discussões ambientais. O Rio precisa de um choque de transparência em meio ambiente, as pessoas às vezes não têm acesso às informações mais básicas. No Sudeste, o único estado em que não há uma regulação de fato da empresa estatal de saneamento é o Rio de Janeiro. Nos outros estados você têm agências funcionando melhor, com informações disponíveis na web sobre valor de tarifa, metas e andamento das obras. No Rio não, você ainda tem uma enorme zona cinzenta em relação aos temas ambientais.

Não faltam exemplos de situações em que o dinheiro foi mal aplicado e a sociedade ficou de fora disso. A UTR (Unidade de Tratamento de Rio), por exemplo, que tem como objetivo ser um paliativo para tratar o esgoto no leito do rio depois que sai da casa das pessoas. A Petrobras construiu uma UTR no Rio Irajá, com dinheiro de contrapartida ambiental, por 40 milhões de reais. Só que essa UTR jamais funcionou. Está lá parada porque a prefeitura diz não ter dinheiro e não concorda com a construção da nova UTR, porque é um paliativo que não resolve o problema. Então a estação está parada, depois de terem sido gastos 40 milhões de reais para construí-la em 2013/2014. E ninguém nem sabe disso.
Curiosamente, o Rio de Janeiro que tem a Baía de Guanabara e as belezas naturais como maior ativo, não mobiliza as pessoas em prol disso. Em qualquer outro lugar do mundo, seria um escândalo você gastar 40 milhões numa estação e ela ficar parada porque não se sabe quem vai operar. Seria compreensível questionar se deveria ou não ter sido construída, mas, uma vez pronta, não faz sentido deixá-la parada. E essa meta olímpica de 80% veio muito por conta da previsão de construção destas UTR’s. Foram previstas seis na Baía de Guanabara, foi construída apenas uma e que não opera.

Quais os desafios do jornalismo ambiental e de que forma ele pode influenciar as decisões da esfera política?

O jornalismo ambiental tem, nos últimos anos, conseguido um espaço e se fortalecido com iniciativas como o Projeto Colabora e o próprio ((o))eco, que é um resistente. É um jornalismo muito movido pela paixão dos seus colaboradores e integrantes. Muitas vezes os próprios pesquisadores, biólogos, engenheiros ambientais, acabam entrando nessa rede, e fortalecendo-a, o que se reflete em reportagens muito bem-feitas, que contribuem para discussão. Mas eu sinto falta de iniciativas do jornalismo ambiental para captar o leitor que não está muito ligado nesses assuntos, ou porque acha que é complicado, ou que é uma bobagem, menos importante que os outros assuntos. É preciso tentar se aproximar desse leitor com uma linguagem mais fácil, um texto mais enxuto, elementos gráficos. Eu sinto que às vezes o jornalista ambiental escreve para si mesmo ou para os próprios amigos que já conhecem o assunto. Precisamos caminhar, e eu me incluo nesse grupo, por um jornalismo que se proponha a atingir cada vez mais pessoas sem comprometer a qualidade, e esse é o desafio, porque é preciso fazer com que as pessoas entendam que é um assunto que diz respeito a elas. Quem mora em Mesquita, na Baixada Fluminense, e não tem saneamento, está contribuindo para a poluição da Baía de Guanabara, assim como quem mora aqui no bairro da Glória e eventualmente joga seu esgoto fora da rede da CEDAE. A Baía de Guanabara é um problema de todos nós, moradores da região metropolitana.
Por exemplo, eu recebi uma informação em off de que o pessoal da Marinha, ali na Ilha das Cobras, no Centro do Rio, estava jogando esgoto na baía e fiz uma matéria sobre isso. E é muito legal quando a informação, que estava fechadinha dentro de uma pasta, vai a público e isso força a resolução dos problemas. O Globo tinha muito peso nisso. Quando sai na mídia os políticos se sentem pressionados a resolver rápido e eu recebi a informação de que a Marinha já fez a ligação com a CEDAE e o esgoto deles agora está indo para ETE [Estação de Tratamento de Esgoto] de Alegria. Menos um poluidor na baía. Essa história está no livro e ajuda a mostrar que é muito fácil só culpar a CEDAE, o governo e as empresas, mas cada um de nós cidadãos que não cobramos as práticas sustentáveis das empresas e dos órgãos públicos somos culpados também. Não há um culpado único nessa história.

Serviço:
Baía de Guanabara -- Descaso e Resistência
Editora Mórula, 124 páginas
Preço: R$35 (à venda em livrarias e através do site www.morula.com.br)


Fonte: http://www.oeco.org.br/reportagens/baia-de-guanabara-livro-reportagem-investiga-fracasso-na-despoluicao/

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Descoberta de um novo bioma marinho: Os incríveis recifes amazônicos

 Vilma Homero
Parecia improvável. Mas contra todas as possibilidades e ao contrário de tudo o que diziam os livros, a 100 km da desembocadura do rio Amazonas, sob uma espessa pluma de sedimentos levados pelas águas, floresce um extenso e riquíssimo recife. As condições em que isso acontece apontavam exatamente para o oposto: como a densa camada de sedimentos sobre as águas impede a penetração de luz solar, e consequentemente a fotossíntese – base da cadeia alimentar de recifes de corais de águas tropicais –, acreditava-se ser impossível que existissem. Mas apesar de todos esses indicativos, algumas pistas levavam exatamente na direção contrária: em 1997, um resumo apresentado pelos pesquisadores Bruce B. Collette e Klaus Rützler em simpósio científico internacional sobre recifes de corais, na cidade de Miami, nos Estados Unidos, falava da presença de esponjas e peixes recifais na região da foz do rio Amazonas. Em 1999, o brasileiro Rodrigo Moura e colaboradores também demonstraram a presença de corais na foz sul do rio. Estudos do projeto Piatam Mar apontavam ainda para alta concentração de carbonato de cálcio biogênico naquelas imediações, levantando a possibilidade de recifes na região. Mas foi somente em 2011 que uma equipe de pesquisadores elaborou projeto para explorar a área. Agora, em 2016, confirmou-se a existência de invertebrados, como esponjas de mais de 100 quilos, e rodolitos, algas calcárias que endurecem e unidas a outras espécies acabam formando um recife. E, como constataram os pesquisadores, esse recife é extenso. “O que sabemos é que se estendem por, no mínimo, 900 quilômetros de costa, entre o Maranhão e a Guiana Francesa”, afirma Thompson.

Está tudo no artigo An extensive reef system at the Amazon river mouth, publicado na Science Advances, da American Association for the Advancement of Science, assinado por Moura, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pelos Cientistas do Nosso Estado, da FAPERJ, Fabiano L. Thompson, da UFRJ, e Carlos Eduardo de Rezende, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), que coordenam o projeto, e vários outros pesquisadores do Rio de Janeiro, de universidades do Pará, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espírito Santo, São Paulo e dos Estados Unidos.

“Em 2012, conseguimos ir até lá com um navio americano. Em 2014, voltamos à região no navio hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha do Brasil, o que nos possibilitou ampliar a área de estudos”, fala Thompson, que destaca o inusitado das descobertas. “Além das gigantescas esponjas, mais de 50 novas espécies foram enviadas ao biólogo Eduardo Hajdu, do Museu Nacional (MN/UFRJ), para serem descritas”, afirma Thompson.

O pesquisador tem grandes motivos de entusiasmo com a descoberta. Ele explica que o novo  bioma compreende três grandes camadas distintas. A primeira delas é formada pela pluma de nutrientes e sedimentos trazidos pelo rio Amazonas, rica em matéria orgânica dissolvida e particulada. É uma camada muito turva, que impede a penetração da luz solar e a fotossíntese, e sua espessura pode chegar a 25 metros de profundidade. “Tudo isso gera uma mudança dramática nesse novo bioma. Sem fotossíntese, não há liberação de oxigênio na água. Logo, o nível de oxigênio naquelas águas decai rapidamente nos primeiros metros de profundidade, atingindo valores entre 3 e 4 mL.L-1. Exatamente por isso, sempre vigorou a ideia da impossibilidade da existência de recifes na desembocadura de rios tropicais barrentos, com grande aporte de sedimentos, como é ocaso do Amazonas”, fala o pesquisador. Thompson explica que isso permanece verdade para os recifes coralinos – aqueles formados pelo acúmulo do esqueleto de corais mortos e que dependem de fotossíntese. “Mas não existe apenas um único tipo de recife. No caso da região amazônica, os recifes do setor norte são formados majoritariamente por esponjas e algas calcárias”, afirma.
Espécies representativas de peixes encontrados dos recifesda desembocadura do rio Amazonas (Fotos: Divulgação)

Na camada seguinte, a subpluma, os micro-organismos que nela vivem retiram a energia de que precisam da quimiossíntese. Ou seja, dos minerais dissolvidos na água e não da luz como acontece na fotossíntese. Minerais como enxofre, ou nitrogenados, como amônia. “Usando-os como fonte de energia, bactérias de origem marinha dão andamento a um processo bioquímico, celular e autotrófico. Em outras palavras, com essa energia, eles produzem suas próprias células e matéria orgânica (exudados).” Por sua vez, essas bactérias e seus exudados são a base de alimentação de micro-organismos, esponjas, moluscos e outros invertebrados marinhos. Na terceira camada, de fundo ou bentônica, espalham-se esponjas e outros invertebrados, além de peixes e lagostas, que se alimentam das bactérias da subpluma“O que chamou a atenção foi a presença de recifes de dezenas de metros de altura e mais de 100 metros de comprimento, espalhando-se entre 60m e 120m de profundidade, a cerca de 100 quilômetros da foz do rio”, anima-se o pesquisador. Thompson explica ainda que, como a maior parte dos 300 mil metros cúbicos/segundo de água barrenta que o Amazonas despeja no oceano Atlântico é levada pelas correntes marítimas para o norte, isso faz com que o recife não seja homogêneo. 

“Precisamos mapear mais de 8.000km2, já que não conhecemos a estrutura e a funcionalidade dos habitats da região.” Por isso mesmo, ele destaca a importância de ampliar os estudos naquela área, já que as evidências desse ambiente atípico não podem ser perdidas ou ignoradas diante da possibilidade de exploração de petróleo na região. “Esperamos que o País e o estado do Rio de Janeiro possam ampliar os investimentos em ciência e tecnologia, em especial na área de Ciências do Mar, pois estes resultados mostram claramente que conhecemos muito pouco da nossa Amazônia Azul”, diz.
Várias espécies de esponjas coletadas na região 

Além de quebrar paradigmas, a pesquisa dos cientistas traz a necessidade de medidas protetoras, que possibilitem o uso dessa biodiversidade marinha. “As esponjas produzem compostos bioativos que podem ter aplicação na biotecnologia, na produção de medicamentos. Afinal, o Rio de Janeiro é pioneiro nessa área”, afirma o pesquisador. Ele lembra que a UFRJ, em parceria com o Instituto de Estudos Almirante Paulo Moreira (IEAPM), e a Universidade Federal Fluminense (UFF) oferecem doutorado em biotecnologia marinha, sob a coordenação dos Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ Ricardo Coutinho e Renato Crespo Pereira. Também na Uenf existe um programa de pós-graduação em Biociências e Biotecnologia.

Para o biólogo, já que a região, próxima da Guiana Francesa, pode ser uma nova fonte para a descoberta de novos medicamentos, também é preciso regulamentar formas de preservá-la e manter a nossa soberania. “Nossa contribuição para isso foi acadêmica, na medida em que descobrir a existência totalmente atípica desse novo bioma foi algo bastante significativo”, fala. A questão que se coloca agora é que, por não estarem nos limites de uma área de proteção ambiental e, pelo contrário, se situarem em um local de intensa atividade pesqueira e industrial, toda aquela região se torna vulnerável. “Ainda mais pela perspectiva de projetos de exploração de óleo e gás para aquela área”, diz Thompson. Como ele afirma, os pesquisadores estão longe de compreender o funcionamento de todo aquele sistema. Há inúmeros aspectos que ainda precisam ser estudados. “Justamente por isso, não podemos nos dar ao luxo de perder este novo bioma que ainda nem entendemos completamente”, alerta o biólogo, que pretende em breve voltar à região. Certamente, será mais uma oportunidade para novas descobertas.
Amostras de fragmentos de carbonato de cálcio
rodolitos coletados na região amazônica

Fonte: http://www.faperj.br/?id=3188.2.6

sábado, 2 de janeiro de 2016

Blocos Carnavalescos da Ilha se unem e formam a Liga União dos Blocos da Ilha do Governador

Por Teresinha Victorino

Um grupo de diretores de blocos carnavalescos da Ilha do Governador se uniu para formar a primeira liga carnavalesca do bairro.


Em 2010 a comissão organizadora do Bloco Carnavalesco Unidos da Ribeira criou um desfile de blocos para encerrar o carnaval da Ilha do Governador numa enorme confraternização onde todos os blocos são convidados a participarem trazendo suas bandeiras, ritmistas, intérpretes e foliões. 

Essa confraternização já virou uma tradição e todo ano recebe diversos blocos da Ilha, de bairros vizinhos e até mesmo de outras cidades do estado do Rio de Janeiro. A multidão toma conta das ruas do bucólico bairro da Ribeira, no final de tarde do primeiro domingo após o carnaval. 

O nome União dos Blocos foi escolhido por alusão a querida escola de samba do bairro, a União da Ilha do Governador.

A camaradagem e a união que existe entre os blocos é uma característica no carnaval do bairro. Os ritmistas, foliões e os diretores estão sempre presentes e prestigiando os eventos, os ensaios e os desfiles dos outros blocos, todos se conhecem e se ajudam. 

O carnaval da Ilha do Governador nos últimos anos tem crescido e melhorado bastante não deixando nada a desejar a outros bairros, mesmo não tendo nenhum bloco famoso quanto os da zona sul e do centro da cidade. Entretanto os moradores da Ilha e dos bairros próximos se esbaldam em seus blocos que a cada ano tem tomado proporções gigantescas com milhares de foliões presentes, desafogando assim os blocos da zona sul e do centro. 

Entretanto, no edital de carnaval 2016 da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, aberto em outubro, muitos blocos do bairro se inscreveram com projetos maravilhosos e todos ficaram de fora. O fato de nenhum bloco do bairro ter sido contemplado pela Secretária de Cultura fez com que um grupo de diretores de blocos repensasse sobre a criação de uma liga que os fortalecessem nessas situações. 

Da ideia à prática foi apenas questão de horas. Num bate papo com amigos, foi criada a Liga União dos Blocos da Ilha do Governador, que foi uma maneira mais fácil que os blocos encontraram para se fortalecer e conquistar parcerias e apoios financeiros. 

O desejo de receber dos órgãos responsáveis e dos patrocinadores um tratamento respeito e que os mesmos considerem o bairro tão importante quanto os outros do Rio de Janeiro foi o combustível para que todos os blocos se unissem e formassem a Liga União.

A Ilha do Governador proporciona aos seus moradores um carnaval seguro e descontraído. A presença de famílias inteiras desde os mais novos até os avós, que têm preferido curtir com segurança, próximo de casa e junto com seus amigos e vizinhos, faz do carnaval do bairro muito especial e característico. Os blocos tem mantido a organização e a harmonia mesmo com o número sempre crescente de foliões e a maioria deles "muito alegres" devido ao consumo de bebidas alcoólicas.

A Ilha do Governador abriga quase 400 mil moradores de todos os níveis sociais e econômicos. E os seus blocos, com as características próprias, fazem o seu carnaval ser considerado um dos melhores e talvez o mais seguro da cidade. Na Ilha do Governador não tem brigas, tiros ou roubos, aqui tem respeito, amizade e cumplicidade. Todos os blocos são amigos e se ajudam. Todos só querem se divertir. Isso é o carnaval da Ilha do Governador. 

A Ilha do Governador já tem o melhor carnaval da zona norte. Amado por seus moradores que fazem com que o bairro seja um dos mais carnavalesco do Rio de Janeiro.

Integrantes do Bloco Unidos da Ribeira e Bloco do Rock

Diversas camisas no desfile da União dos Blocos 2015

Famílias inteiras curtindo o carnaval na Ilha do Governador

Todos unidos confraternizando no carnaval da Ilha do Governador

Presença das crianças nos blocos da Ilha do Governador

A então Rainha de Bateria da União da Ilha, Bruna Bruno e a musa do Bloco Unidos da Ribeira no desfile da União dos Blocos 2015

Efeito estufa, bronquite e pimentões envenenados

Por Guilherme José Purvin de Figueiredo, outubro 2015.

Poluição urbana. Foto: Sergio Neves

As manchetes jornalísticas nos últimos dias foram pródigas na temática ambiental.
A principal delas foi o discurso de Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU, no dia 28 de setembro.
Na ocasião, ela subiu ao palanque para afirmar que “O Brasil está fazendo grande esforço para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, sem comprometer nosso desenvolvimento” e mais, que “Estamos investindo na agricultura de baixo carbono”.
Com esse Congresso Nacional que temos hoje, Kátia Abreu na toda poderosa pasta da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o IBAMA administrativamente enfraquecido e o CONAMA hoje sem o antigo dinamismo que o caracterizava no debate plural visando a proteção ambiental, são poucos os que acreditam na sinceridade desse “grande esforço” ambiental.
Proselitismo à parte, o que importa é que a presidente do Brasil comprometeu o país a contribuir com a redução das emissões de gases de efeito estufa, alcançando em 2030 o equivalente a 43% do que emitiu em 2005.
De fato, a presidente falou em meta absoluta de redução de gases de efeito estufa. Assim, sinalizou positivamente para o mercado brasileiro: produção com baixa emissão de carbono poderá ser promissora e gerar um círculo virtuoso de sustentabilidade ambiental.
Ademais, o discurso de Dilma na ONU gera efeitos positivos na agenda de Direito Internacional do Meio Ambiente, levando outros países a assumirem compromissos mais ambiciosos e efetivos na luta mundial contra o aquecimento global e as mudanças climáticas.
Sintomaticamente, a Índia, terceiro maior poluidor do mundo, país que tradicionalmente se mostra avesso a assumir compromissos ambientais e que, na mesma Assembleia Geral, anunciou que tenciona também fazer alguma coisa em prol do planeta: crescer sete vezes até 2030, mas “apenas” triplicar nesse período a emissão de carbono e outros gases de efeito estufa.

Veneno no ar e na mesa
Internamente, as notícias são menos alvissareiras.
Em 3 de outubro, reportagem de primeira página da Folha de S. Paulo, de autoria de Marcelo Leite, dava conta que o ar atmosférico nas regiões metropolitanas do Brasil está muito longe de alcançar os níveis de qualidade do ar recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Destaque especial foi dado ao material particulado fino (MP 2,5): todos os 27 aparelhos paulistas e fluminenses que monitoram esse poluente, afirma a reportagem, “registram médias anuais acima desse padrão (10 microgramas por metro cúbico)”. Consequência disto são doenças cardiorrespiratórias da mais variada espécie, da bronquite ao ataque cardíaco.

E, no dia 4 de outubro, a mesma Folha de S. Paulo denunciava em sua primeira página que não há no país praticamente nenhuma fiscalização sobre a quantidade de agrotóxicos em nossos alimentos. Numa análise por amostragem da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), foi constatado que 31% dos alimentos continham agrotóxicos proibidos ou em quantidade acima da permitida para os produtos. Os mais venenosos são o pimentão (90%), o morango (80%) e a alface (60%). As consequências dessa falta de fiscalização são: câncer, alteração no sistema hormonal e imunológico, malformações congênitas, dificuldades respiratórias e, na melhor das hipóteses, apenas irritação na pele. A matéria destaca ainda que lavar bem os alimentos ajuda, mas não elimina todos os resquícios de agrotóxicos.

Os recentes noticiários revelam uma conscientização ambiental cada vez maior, fenômeno que se reflete na mídia impressa, mas o poder público continua a usar levianamente expressões como “desenvolvimento sustentável”, “biodiversidade” e “qualidade de vida”. O quadro é de perplexidade. Fica difícil acreditar que o país possa estar preocupado com o aquecimento global quando demonstra total descaso para com a saúde de sua população. Por outro lado, somos forçados a admitir que a situação seria ainda pior se, também no plano internacional, o Estado Brasileiro dedicasse o mesmo desprezo à qualidade de vida que reserva aos seus súditos.

Guilherme José Purvin de Figueiredo
Coordenador Geral da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil - APRODAB. Professor Convidado dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Ambiental da PUC-Rio e PUC-SP. Doutor em Direito pela USP. Autor dos livros “Curso de Direito Ambiental” (6ª Ed., RT) e “Propriedade no Direito Ambiental” (4ª Ed., RT).

Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/guilherme-jose-purvin-de-figueiredo/efeito-estufa-bronquite-e-pimentoes-envenenados/



Onde estão as “medidas inovadoras” do pior desastre ambiental do Brasil?

Por Guilherme José Purvin de Figueiredo em  17 dezembro 2015

Foto: Rogério Alves/TV Senado

Quando a barragem de Fundão ruiu, além de prejuízos materiais e morais (psicológicos, socioculturais) à população, causou danos ambientais gravíssimos, a ponto de levar a Ministra do Meio Ambiente, Sra. Izabella Teixeira, a declarar:

"O desastre é enorme, é uma catástrofe, o pior desastre ambiental do país, e temos de tomar medidas inovadoras para resolver. A gente sabe que a parte de peixes, a fauna intocada, répteis, isso foi perdido ".

O Direito Ambiental brasileiro foi por muito tempo um dos mais avançados do mundo. Seu primeiro grande marco foi a Lei 6.938/81 que, no seu art. 14, § 1º, introduziu a regra da responsabilidade civil objetiva em matéria ambiental: para efeitos de reparação civil (patrimonial), não importa se a Samarco agiu com negligência, imperícia ou imprudência, basta que esteja demonstrado o elo de causalidade (rompimento da barragem / desastre ambiental).

Outro marco histórico do Direito Ambiental foi a criação da ação civil pública pela Lei 7.347/85, que permitiu a defesa em juízo dos chamados direitos difusos (que pertencem a uma coletividade indeterminada de pessoas, como o direito à água potável, o direito à saúde, o direito à preservação das tradições culturais de uma cidade).

Com a Lei 7.347/85, diversas instituições passaram a poder defender esses direitos da coletividade: Ministério Público, autarquias como o IBAMA, a Advocacia Geral da União, as Procuradorias Gerais dos Estados, as associações especialmente criadas para a defesa de tais direitos e, mais recentemente, também a Defensoria Pública.

É importante que haja um grande número de instituições legitimadas para propor a ação civil pública, principalmente quando a vítima do dano ambiental é uma população economicamente carente e indefesa, que depende vitalmente da empresa poluidora para assegurar seu sustento. Num caso como o de Mariana, deixar que a população cuidasse da defesa de seus direitos seria retroceder à barbárie. Os atingidos pela barragem da Samarco tiveram direitos humanos violados – e esta questão é investigada pela ONU, que desde o dia 07 de dezembro está no Brasil, em visita para averiguação não só do que ocorreu ali, mas também em Belo Monte, no Pará, na operação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro e nas obras de infraestrutura para as Olimpíadas.

Assim, graças à legislação vigente, é possível tomar medidas legais imediatas: no plano administrativo, aplicação de multas, interdição de atividades, apuração de responsabilidades funcionais; no plano pré-processual, instauração inquéritos civis, lavratura de termos de ajustamento de conduta; no plano processual, ajuizamento de ações cautelares e principais pelo Ministério Público (Federal, do Estado e do Trabalho), pela Defensoria Pública e por outros co-legitimados da Lei 7.347/85.

Não há necessidade de adoção de medidas inovadoras, salvo se aplicar a lei vigente merecer esse qualificativo.

As notícias que chegam de Minas Gerais, contudo, são acintosas. De acordo com notícia veiculada pelo site do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma senhora de quase setenta anos, exercendo o seu direito de ver ao menos em parte ressarcidos os prejuízos sofridos pelo rompimento da barragem, pediu que fosse reposta sua máquina de lavar (!). Transcrevo esta passagem da notícia: 

 “Para a surpresa da senhora de 69 anos, ao fazer o pedido, uma assistente social exigiu que ela provasse que tinha realmente necessidade. “Ela me pediu que eu apresentasse um laudo médico que provasse que eu não tenho força para torcer a roupa. Eu tenho osteoporose, tomo vários remédios”, conta surpresa a idosa. Quando foi levar o marido em um neurologista na cidade de Ponte Nova, aproveitou e pediu o médico para fazer o laudo. Mas ele, igualmente surpreso, disse que não poderia fazer porque não era a sua área. Dona Cenita, então, foi em um posto de saúde de Barra Longa e pediu um laudo para uma médica clínica geral que acabou dando um relatório simples que foi entregue à assistente social.”

Vai daí a enorme relevância da atuação da Defensoria Pública, quando não para restituir imediatamente a tantas outras “Donas Cenitas” o que perderam, ao menos para evitar tais episódios de humilhação e afronta à dignidade humana como o relatado, pena de ajuizamento de ação por danos morais.

Porém, o acinte dessas megaempresas parece não ter fim.

De um lado, os jornais noticiam que a Vale se recusa a reconhecer sua co-responsabilidade pelo acidente, mesmo sendo sua acionista e, no plano fático, tendo utilizado da barragem para deposição de resíduos de mineração que ela mesma produziu.

Quanto à BHP, de quem (talvez ingenuamente) se esperava uma atitude socioambientalmente menos desprezível, depois de oscilação negativa no mercado de ações na Austrália, rapidamente se recuperou, numa demonstração de tranquilidade dos investidores, que já consideram assegurada sua incolumidade patrimonial num país como o nosso.  

A filha espúria das duas gigantes, Samarco, em ofício enviado no dia 9/12, formalizou sua recusa em assinar termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público. Por esse motivo, o MP decidiu propor ação civil pública em face das três empresas, Samarco e suas controladoras, esclarecendo que “... a Vale é solidariamente responsável pelos eventos, pois há provas de que a empresa usava a barragem de Fundão para depositar rejeitos da mina do complexo de Alegria, conforme depoimentos prestados por engenheiros da própria Samarco, comprovado ainda por um laudo do Departamento Nacional de Produção Mineral. Por sua vez, a BHP Billiton lucrou com o uso indevido da barragem, tornando-se corresponsável nos termos da chamada 'teoria do risco-proveito’”.

As três empresas permanecem prepotentemente impassíveis. Confiam em seu poderio econômico de convencimento. Sabem que Minas Gerais depende do setor da mineração para sustentar-se economicamente. Conhecem a “política de aceleração do crescimento” do Governo Federal e sorriem autoconfiantes, na certeza de que, mesmo em face da maior tragédia ambiental da história da América Latina, ainda emplacarão com seu novo Código de Mineração, cujo relator, por sinal, é o Deputado Federal Leonardo Quintão, líder do PMDB na Câmara, nome de confiança do vice-presidente Michel Temer, que admite sem pejo ser financiado pelas mineradoras.

Por esse motivo, não causa espanto a declaração da Sra. Marilene Ramos, Presidenta do IBAMA, no mesmo dia 9/12, em que a Samarco comunicou sua recusa em assinar o termo de ajustamento de conduta com o MPMG, de que o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, não deve levar a um “retrocesso da legislação”. A comandante da autarquia, que teria o dever de zelar pela observância do art. 170, VI, da Constituição Federal, afirma ao setor empresarial: “Num prazo bem longo, não sei precisar se em 20 anos ou antes, vejo o licenciamento ambiental embasado no autolicenciamento, onde não vou precisar mobilizar centenas de técnicos”.

Acredita ela que estará ainda no mesmo cargo daqui a 20 anos? Seria o “autolicenciamento”, esse delírio ultraliberal que causou a morte de ao menos treze pessoas, além de toda a fauna do Rio Doce, a medida inovadora a que a Ministra Izabella Teixeira se referia?

De minha parte, espero que nos próximos 20 anos consigamos ao menos resistir para evitar que essa campanha de retrocesso na legislação de defesa dos direitos humanos, do direito à saúde e ao meio ambiente seja estancada e que prevaleçam princípios e instrumentos como o da responsabilidade civil objetiva, da autoexecutoriedade dos atos administrativos voltados à proteção da vida, da saúde e do meio ambiente, da responsabilidade do poluidor indireto, da ação civil pública, da desconsideração da personalidade jurídica, da recomposição integral dos danos.

Medida inovadora e muito bem-vinda, no atual estado de coisas, será levar a sério a Constituição Federal e permitir que nossas instituições como o Ministério Público, Defensoria Pública e órgãos administrativos criados para a defesa do meio ambiente apliquem a legislação em vigor. Medida inovadora será rediscutir, em audiências públicas democráticas, com as populações atingidas e com órgãos de defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente, projetos como o do novo Código de Mineração.


Guilherme José Purvin de Figueiredo
Coordenador Geral da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil - APRODAB. Professor Convidado dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Ambiental da PUC-Rio e PUC-SP. Doutor em Direito pela USP. Autor dos livros “Curso de Direito Ambiental” (6ª Ed., RT) e “Propriedade no Direito Ambiental” (4ª Ed., RT).

Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/guilherme-jose-purvin-de-figueiredo/onde-estao-as-medidas-inovadoras-do-pior-desastre-ambiental-do-brasil/

Tragédias como Mariana deviam ensinar

Por Paulo Barreto, 17 dezembro 2015

Imagem do satélite Landsat-8 próximos à barragem e sobre o distrito de Bento Rodrigues em Mariana disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial.

O rompimento de barragens com resíduos de mineração está deixando um rastro de destruição por centenas de quilômetros do Rio Doce e no seu estuário. O rastro laranja atinge um rio que já agonizava por dezenas de anos de maus tratos. Tragédias como essa deveriam servir para melhorar a prevenção e a punição de crimes ambientais.

Vamos ver lições dos Estados Unidos segundo o livro de Richard Lazarus, professor de direito ambiental na Universidade Harvard. Em 1969, logo que o Presidente Richard Nixon tomou posse ocorreu um vazamento de óleo na Califórnia e um rio (Cuyahoga) em Ohio pegou fogo de tanta poluição acumulada. Nixon, do partido republicano que geralmente evita a regulação, propôs legislação ambiental para evitar que os democratas ganhassem o mérito por iniciativas ambientais. Nos meses e anos seguintes, o presidente e o Congresso aprovaram leis de proteção do ar e da água, incluindo o licenciamento ambiental, e as instituições executoras, como a Agencia de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency – EPA).

Nas décadas seguintes a aplicação das leis ajudou a reduzir drasticamente a poluição. Mas, não foi fácil. Políticos e lobistas empresariais tentaram enfraquecer a lei e os órgãos ambientais. Nixon tentou reverter parte das leis que ele mesmo promoveu ao considerar que não teriam resultado nos ganhos eleitorais que imaginava. O Congresso não deixou. O Presidente republicano Ronald Reagan também tentou enfraquecer as leis. Mas um senador do mesmo partido de Reagan, que era maioria no senado, se juntou aos democratas e bloqueou as medidas do presidente. Quando o presidente indicou gestores do EPA com o objetivo de bloquear a aplicação das leis, o Congresso constrangeu os administradores do EPA por meio de audiências públicas para que eles aplicassem as leis. Em outros momentos, o Congresso também tentou enfraquecer a lei. O Presidente Bill Clinton resistiu.

As ONGs pressionaram por melhorias. Por exemplo, usando as regras de transparência pública, A National Wildlife Federation publicou em 1989 a primeira lista das 500 empresas mais poluidoras do país (The Toxic 500). A sociedade civil demandou intervenção judicial em muitos casos. A Justiça Federal sentenciou contra as empresas e órgãos ambientais. Criminosos ambientais foram presos. Sem a possibilidade de prisão, os empresários incorporariam as multas aos custos de fazer o negócio e continuariam a poluir.

"A presidente Dilma deixaria sua marca positiva se também nomeasse uma comissão independente para aprender as lições do rompimento da empresa Samarco e promovesse as mudanças necessárias. "

A tragédia em Mariana está sendo seguida de algumas medidas punitivas. Os Ministérios Públicos de Minas e Federal cobraram preliminarmente R$ 1 bilhão da empresa para custear ações emergenciais. O governo federal multou a empresa em R$ 250 milhões e prometeu ajuizar ações de reparação de R$ 20 bilhões. Embora estas ações sejam essenciais, são insuficientes para assegurar que a gestão ambiental melhorará. O histórico recente mostra que o poder público tende a enfraquecer as leis ambientais quando elas “pegam”.

Na última década algumas leis ambientais começaram a ”pegar” por causa de pressões da sociedade civil, da independência do Ministério Público, da renovação de pessoal do Ibama e de eventuais líderes comprometidos no poder executivo. Por exemplo, a combinação destas forças ajudou na redução do desmatamento em cerca de 85% entre 2004 e 2012. Porém, o poder público e lobistas se uniram para enfraquecer as leis e os órgãos ambientais. Em 2012, o Congresso e Executivo anistiaram parte do desmatamento ilegal mudando o Código Florestal e reduziram Unidades de Conservação.

Pior , eles ainda querem mais. O Congresso está tentando dificultar a demarcação de Terras Indígenas. Enquanto ainda existem corpos desaparecidos da tragédia em Mariana, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional aprovou o projeto de lei 654/2015, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que facilita o licenciamento de obras de infraestrutura nos sistemas viário, hidroviário, ferroviário e aeroviário; portos; energia; telecomunicações. Se aprovado pelo plenário e sancionado pela Presidente, o órgão ambiental terá 60 dias para avaliar os estudos ambientais e solicitar esclarecimentos. Depois disso, terá mais 60 dias para decidir. Se o órgão ambiental não conseguir avaliar o projeto neste período, o licenciamento será considerado aprovado. Em Minas Gerais, a Assembleia Legislativa aprovou em regime de urgência projeto do governador que impõe prazos para o licenciamento ambiental. Avaliar rapidamente projetos complexos com pouco pessoal é missão impossível para os órgãos ambientais.

Neste contexto, as ideias e pressão para mudar terão de vir de fora. A experiência americana mostra que promotores, judiciário, a sociedade civil e a imprensa foram essenciais. Além de  fazer cumprir as leis existentes, temos que aprender com as tragédias. Nos EUA, depois do vazamento de óleo no golfo do México em 2010, o Presidente Obama nomeou uma comissão independente para avaliar o caso. Um advogado e químico, professor de Harvard, dirigiu o trabalho que apresentou lições valiosas. A presidente Dilma deixaria sua marca positiva se também nomeasse uma comissão independente para aprender as lições do rompimento da empresa Samarco e promovesse as mudanças necessárias. Sem aprender, vamos continuar apenas chorando pelas vítimas e lamentando as perdas ambientais e econômicas.

Paulo Barreto

Sonha com um mundo sustentável e trabalha para que este desejo se torne realidade na Amazônia. É pesquisador Sênior do Imazon e mestre em Ciências Florestais pela Universidade Yale (EUA).


Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/tragedias-que-ensinam/

Vida das Aves: Humboldt e eu escalando o pico das Agulhas Negras

Por Marcos Rodrigues em Dezembro 2015.
Subindo a serra do Itatiaia e observando o gradiente altitudinal de diversidade. Foto: Pedro Jordano

Estou aqui dentro de um ônibus, ainda como aluno de graduação em biologia junto com outros trinta e cinco colegas de turma numa excursão rumo ao Parque Nacional do Itatiaia, nas montanhas do Rio de Janeiro. O professor que nos guia é o corajoso João Vasconcellos. Corajoso porque eu dificilmente levaria a cabo uma excursão destas. São quase quarenta pós-adolescentes com os hormônios à flor da pele, apinhados num ônibus sem ar condicionado, com as janelas escancaradas deixando que o ar quente do vale do Paraíba infeste ainda mais o ambiente de euforia. Um toca violão lá no fundão do ônibus, acompanhado por vozes desafinadas. A turma que senta nas poltronas intermediárias conversa, ri, gargalha e gesticula sem parar. Poucos realmente prestam atenção ao que está acontecendo.
Para falar a verdade, eu confesso que nada sabia sobre a serra do Itatiaia, a não ser que lá estava um dos picos mais altos do Brasil com seus 2.791 metros de altitude. Todo esse conhecimento profundo vinha das aulas de geografia do ensino fundamental, já deixado para trás há anos: Agulhas Negras, outrora considerado o pico mais alto do Brasil.
Mas o professor Vasconcellos nos proporcionou uma viagem fascinante que jamais esquecerei. Saímos do quente e abafado vale do Paraíba, numa altitude de 500 metros acima do nível do mar, na caótica rodovia Presidente Dutra. Acredite: nos anos 80 essa rodovia era muito pior que nos dias de hoje.
A estrada nos levava ao sopé das montanhas florestadas e escuras protegidas pelo Parque Nacional do Itatiaia.
“Saímos da baixada, quase ao nível do mar, e vamos em direção ao planalto, visitaremos o pico das Agulhas Negras que está a quase três mil metros de altitude. O que iremos testemunhar agora é um dos padrões ecológicos mais conhecidos: o gradiente altitudinal de diversidade”. Foram as palavras do professor.

Mas afinal o que é o gradiente altitudinal de diversidade?
À medida que o ônibus subia a serra percebíamos a mudança na vegetação. No início a floresta com árvores altíssimas, de troncos grossos e repletos por bromélias e outras epífitas. O sub-bosque era densamente povoado por árvores menores, arbustos, palmiteiros, taquaras e xaxins gigantes. Tudo era muito verde, muito úmido e muito escuro. O ônibus subia e olhávamos pela janela toda aquela paisagem fechada e sem horizontes.
Curvas e mais curvas entre subidas íngremes ao lado de desfiladeiros florestados: nada mais do que isso.
“Agora percebam a floresta nebular, o menor número de espécies de árvores pode ser notado pela copa uniforme das árvores”. Continuava o professor.
Sim, estávamos agora no sopé do planalto, a mais de mil metros de altitude e a floresta alta e densa da baixada havia se transformado numa floresta de árvores pequenas e de troncos completamente tomados por musgos e barbas-de-velho (que é uma bromélia). Tudo isso em meio a uma neblina densa que fazia com que a paisagem se parecesse com um jardim de duendes.
“Finalmente chegamos aos campos de altitude, onde praticamente não há árvores, mas muitas gramíneas e outras plantas típicas desse ecossistema que só ocorrem aqui. Agora percebemos claramente o padrão do gradiente altitudinal de diversidade: à medida que subimos uma montanha, a diversidade de flora e fauna diminui. O número de espécies de árvores e arbustos cai a zero, e essa diminuição de diversidade acontece com muitos grupos de animais”. Mais uma vez avisava o professor.
Nos campos de altitude o horizonte se abria diante dos nossos olhos, com um céu azul anil forte que protegia toda a paisagem ocre das gramíneas. Neste momento descemos do ônibus e começamos uma caminhada rumo às famosas Agulhas Negras.
Os campos de altitude são ecossistemas que aparecem nos pontos mais elevados das montanhas do leste do Brasil: nas serras do Mar, da Mantiqueira e do sul do Brasil, a serra do planalto gaúcho. Estes campos estão situados acima de 1500 metros de altitude e geralmente sobre rochas de granito. A flora dos campos de altitude e, até certo ponto, o clima e o solo se mostram muito semelhantes àqueles da região dos Andes e assim esse ecossistema também recebe a denominação de “páramos brasileiros”.

A diminuição do número de espécies de plantas e animais à medida que subimos uma montanha não é um fato novo na ciência. O padrão de gradiente altitudinal fora descrito há muitos anos por um dos maiores cientistas da humanidade: Alexander von Humboldt.

De Berlin para os Andes: uma narrativa que transcende o tempo

Alexander von Humboldt por Friedrich Georg Weitsch. Fonte: Wikipédia

Humboldt viveu entre 1769 e 1859 e escreveu sobre tudo: geologia, geografia, história natural, economia, física e química. Humboldt nasceu em família nobre na Berlin da antiga Prússia (hoje Alemanha). Possivelmente ele foi o mais famoso cientista de sua época. Humboldt descreveu cerca de 4.000 experimentos científicos, envolvendo cerca de 300 tipos diferentes de animais e plantas – de ratos a mimosas, sanguessugas e outros vermes. Ele concluiu, por exemplo, que os animais partilham o potencial geral de estimulação elétrica (que está ausente em plantas), e que a estimulação elétrica é transmitida através dos nervos.
Mas Humboldt é mais conhecido por ter sido um intrépido explorador. Sua vida foi cheia de aventura e descobertas, quer escalando os vulcões mais altos do mundo, remando pelo Orinoco ou atravessando a gélida Sibéria.
Seus trabalhos mais conhecidos são as descrições precisas sobre a geografia da América do Sul, por onde ele empreendeu uma épica viagem entre os anos de 1799 e 1804. Humboldt escreveu dezenas de livros e artigos científicos e foi exatamente entre as montanhas mais altas da cordilheira dos Andes que ele vislumbrou o padrão altitudinal de diversidade.

Viagem ao pico da Terra
Chimborazo: um vulcão em forma de cone situado em plena linha do equador, culminando a 6.267 metros de altitude e a apenas 180 km ao sul de Quito é o pico mais alto dos Andes equatoriais. Segundo as próprias palavras de Humboldt:

Na costa do mar do Sul, após as longas chuvas de inverno, quando o ar de repente se torna mais lúcido, Chimborazo aparece para o observador como uma nuvem no horizonte; ele destaca-se dos picos vizinhos; ele paira acima de toda a cordilheira dos Andes tão majestoso quanto o duomo, a obra do gênio Michelangelo que paira acima dos monumentos antigos que rodeiam o Monte Capitolino”. 1

Humboldt, além de descrever poeticamente o Chimborazo já explica a magnitude da montanha:

“O brilho radiante de suas neves, quando visto do porto de Guayaquil, no final da estação chuvosa é discernido no horizonte. Isso pode nos levar a supor que ele deve ser visto a uma distância muito grande no mar do Sul. Os pilotos altamente dignos de crédito garantiram-me que eles o observam a partir da rocha de Muerto, a sudoeste da ilha de Puna, a uma distância de 47 léguas”. 1

Chimborazo, pintado por Frederic Edwin Church (1826-1900) em 1864. Church é um dos principais artistas dos Estados Unidos. Suas leituras de Alexander von Humboldt o levou a viajar aos Andes, onde ele seguiu os passos de Humboldt. “A grandiosidade épica e a dramaticidade sublime de sua obra sintetizam as ideias do romantismo”. Fonte: Wikipédia e 'O Livro da Arte' – Martins Fontes

Em Junho de 1802, Humboldt e seu amigo inseparável, o botânico Aimé Bonpland, subiram as encostas do Chimborazo, até então considerada a montanha mais alta do mundo. Eles chegaram a 6.327 metros, um recorde de escalada na época. O pico só foi atingido em 1880, pelo famoso alpinista britânico Edward Whimper.
Humboldt, um escritor prolífico, descreveu suas observações em um livro intitulado “Ensaio sobre a geografia das plantas” publicado em 1807 e considerado um texto fundamental da ecologia e biogeografia.2

Eu escrevi a maior parte do trabalho na própria presença dos objetos que eu estava a descrever, no sopé do Chimborazo, no litoral do mar do Sul.” 2

A descrição de Humboldt não poderia ser mais precisa:

Quando se sobe a partir do nível do mar para os picos de altas montanhas, pode-se ver uma mudança gradual na aparência da terra e nos vários fenômenos físicos na atmosfera. As plantas nas planícies são gradualmente substituídas por outras muito diferentes: plantas lenhosas diminuem pouco a pouco e são substituídas por plantas herbáceas e alpinas; ainda mais alto, encontra-se apenas gramíneas e criptogâmicas. As rochas são cobertas com alguns líquenes, mesmo nas regiões de neve perpétua. Como o aspecto das mudanças de vegetação, o mesmo acontece com a forma dos animais: os mamíferos que vivem na floresta, os pássaros que voam no ar, até mesmo os insetos roendo as raízes no solo são todos diferentes de acordo com a elevação do terreno.” 2

Humboldt continua descrevendo o fenômeno e o compara a várias outras partes do planeta, esboçando com lógica aguçada que os padrões altitudinais estão diretamente relacionados aos padrões latitudinais:

Estas variações são encontradas em todas as regiões onde a natureza fez cadeias de montanhas e planaltos acima do nível do mar; mas são menos proeminentes em zonas temperadas do que no equador onde a Cordilheira tem uma altitude de 5.000 a 6.000 metros, e onde há uma temperatura uniforme e constante em cada elevação. Perto do pólo norte há montanhas quase tão colossais como as encontradas no reino de Quito, e cujo agrupamento foi frequentemente atribuído a rotação da Terra. Monte Saint Elias, situado na costa americana em frente à costa da Ásia, a 60 ° 21 ‘de latitude boreal, tem 5.512 metros de altura; Monte Fairweather, situado no grau 59 de latitude boreal, tem 4.547 metros de altura. Na nossa latitude média de 45 graus, o Mont-Blanc tem uma altura de 4.754 metros, e pode-se considerá-lo como sendo a montanha mais alta do Velho Continente, até que exploradores corajosos possam medir a cadeia de montanhas no noroeste da China, que alguns têm afirmado a ser maior do que Chimborazo. Mas nas regiões do norte, nas zonas temperadas a 45 graus, o limite da neve permanente, que é também o limite para toda a vida organizada, é apenas a 2.533 metros acima do nível do mar. O resultado é que em montanhas das zonas temperadas, a natureza pode desenvolver a variedade de seres organizados e fenômenos meteorológicos em apenas metade da superfície oferecidos por regiões tropicais, onde a vegetação deixa de existir somente em 4.793 metros. Em nossas latitudes do norte, a inclinação dos raios do sol e do comprimento desigual dos dias elevam a temperatura no ar da montanha tanto que a diferença entre a temperatura nas planícies e a temperatura a 1.500 metros é muitas vezes imperceptível: por este motivo, muitas plantas que crescem ao pé dos nossos Alpes também são encontrados em grandes alturas.” 2

Humboldt também descreve os animais que encontra no alto de Chimborazo. A caracterização dos animais se dá pelas cotas de altitude e não poderia ser mais precisa.

Do nível do mar até 1.000 metros, nas regiões de palmeiras e gengibres [Zingiberales], encontram-se preguiças que vivem na Cecropia peltataboas e crocodilos que dormem ao pé da Conocarpus e Anacardium caracoli. É aí queCavia capivara se esconde nos pântanos cobertos de Heliconia e Bambusa a fim de escapar da busca da onça; Crax, tanayra e papagaios empoleiram-se em Caryocar e Lecythis. É aí que se vê Elater noctilucus alimentando-se de cana de açúcar, e Curculio palmarum vivendo na medula de coqueiros. As florestas nessas regiões tórridas estão vivas com os gritos dos macacos bugios e outros macacos sapajou. A onça-pintada, o Felis concolor, e o tigre preto do Orinoco, ainda mais sanguinário do que o jaguar, caçam cervos pequenos (C. mexicanus), Cavia e tamanduás, cuja língua é fixada no final do esterno.” 2

A presença de animais ‘perniciosos’ encontrados nas terras baixas tornou sua viagem ainda mais difícil.

O ar das regiões das terras baixas, especialmente na borda de matas e nas margens dos rios, está cheio de mosquitos em tais quantidades que esta parte grande e bonita da terra é quase inabitável. Além dos mosquitos, háOestrus humanus [mosca berneira – Dermatobia hominis] que colocam seus ovos na pele dos homens e provocam dolorosos inchaços; há ácaros que atacam a pele, aranhas venenosas, formigas e cupins que destroem as estruturas construídas pelos habitantes.” 2

Entre as cotas de 1000 e 2000 metros de altitude Humboldt descreve:

Nas regiões de samambaias arborescentes, quase não há jaguares, não há boas, não há crocodilos, e não há peixes-boi e alguns macacos; mas há uma abundância de antas, porcos do mato e Felis pardalis. Homens, macacos e cães são incomodados por um número infinito de pulgas (Pulex penetrans) que são menos abundantes nas planícies.” 2

As surpresas encontradas por Humboldt continuam conforme ele sobe o Chimborazo:

Entre 2.000 e 3.000 metros, nas regiões superiores do quinquinas, não há macacos, não há Cervus mexicanus; mas há Felis tigrina, ursos, e o grande veado dos Andes. A esta altitude, igual à cimeira Canigou, piolhos, infelizmente, são abundantes. De 3.000 a 4.000 metros, encontra-se uma espécie de pequeno leão chamado puma na língua Quichoan, pequenos ursos com testas brancas, e algumas civetas [provavelmente mustelídeos]. Eu fui surpreendido ver beija-flores em altitudes semelhantes ao cume Tenerife.” 2

E finalmente, nos páramos da cordilheira, Humboldt destaca os animais que ali habitam e suas questões biogeográficas:

“A região de Espeletia frailexon e de gramíneas, de 4.000 a 5.000 metros de altitude, é habitada por grupos de vicunhas, guanaco, e alpaca …. É um aspecto muito marcante da geografia de animais que alpacas, vicunhas, e “guanaco” vivem ao longo de todo o cume dos Andes, do Chile até o nono grau de latitude austral, mas não são vistos a partir desse ponto ao norte, nem no reino Quito, nem nos Andes de Nova Granada. A avestruz [ema] de Buenos Aires apresenta um fenômeno semelhante. É difícil entender por que esse pássaro não é encontrado nas vastas planícies ao norte da Cordillera Chiquitos, onde bosques são intercaladas com algumas savanas.” 2

Humboldt descobre os limites da vida

Humboldt e Bonpland a caminho do Chimborazo, por Friedrich Georg Weitsch. Fonte: Wikipedia

Humboldt e Bonpland “rastejavam sobre mãos e joelhos ao longo de um alto cume estreito que tinha apenas dois palmos de largura. O caminho, se é que se pudesse chamar aquilo de ‘caminho’, estava repleto de camadas de areia e seixos soltos que se deslocavam quando tocados. Para baixo à esquerda era um penhasco íngreme incrustado com gelo que brilhava quando o sol rompia a nuvem espessa. A vista para a direita, com uma queda de 300 metros, não era muito melhor. Ali, as paredes escuras estavam cobertas de rochas que se projetavam como lâminas de faca. Humboldt e Bonpland se moviam lentamente. Sem equipamento e sem roupas apropriadas, aquilo era uma escalada perigosa. O gelo já havia anestesiado suas mãos e pés. A neve úmida já havia penetrado por suas botas finas, e cristais de gelo se penduravam sobre seus cabelos e barbas. A 5.200 metros acima do mar eles lutavam para respirar o ar rarefeito. À medida que prosseguiam, as rochas pontiagudas desfiavam a sola de seus sapatos, e seus pés começavam a sangrar.” 3 Não havia mais vida a partir daquela altitude.
Era 23 de junho de 1802 e Humboldt e Bonpland, que já haviam sido abandonados pelos guias locais, estavam agora na zona de gelo ‘eterno’ do Chimborazo. Os limites biogeográficos da cordilheira são então perfeitamente expostos por Humboldt:

O limite inferior de neve perpétua é, por assim dizer, o limite superior dos seres organizados. Algumas plantas liquenóides vegetam por baixo da neve; mas o condor (Vultur gryphus) é o único animal que vive nestas vastas solidões. Vimo-lo subir a mais de 6.500 metros de altitude. Alguns esfingídeos [borboletas Sphingidae] e algumas moscas que vimos a 5.900 metros de altitude pareceu-me serem levados para lá involuntariamente por correntes de vento ascendente.” 2

Finalmente Humboldt coloca as condições atmosféricas como explicação para o surgimento deste padrão:

Nos trópicos, pelo contrário. Na vasta superfície de até 4.800 metros, sobre esta superfície íngreme, escalando do nível do mar para as neves perpétuas, vários climas seguem um ao outro e estão sobrepostos, por assim dizer. Em cada elevação, a temperatura do ar varia apenas um pouco; a pressão da atmosfera, o estado higroscópico do ar, a sua carga elétrica, todos estes seguem leis inalteráveis que são ainda mais fáceis de reconhecer porque os fenômenos são menos complicados lá. Como resultado, cada elevação tem as suas próprias condições específicas, e, portanto, produz formas diferentes de acordo com estas circunstâncias, de modo que nos Andes de Quito, em uma região com uma largura de 2.000 metros pode-se descobrir uma maior variedade de formas de vida que em uma zona igual nas encostas dos Pirineus.” 2

Desde então, muitos naturalistas de peso, como Charles Darwin e Alfred Russel Wallace e ecólogos contemporâneos trabalharam para confirmar se esse padrão poderia ser generalizado para todas as plantas e animais. É bom lembrar que Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions of the New Continent era o livro de cabeceira de Charles Darwin enquanto ele navegava a bordo do Beagle. Wallace também cita o mesmo livro como um dos mais importantes da sua vida.
Ao que parece o padrão foi encontrado para espécies de mamíferos, formigas, árvores e muitas outras plantas e aves. Várias hipóteses foram lançadas para explicar este fenômeno. Condições atmosféricas como a temperatura e pluviosidade poderiam explicar o fato? Ou seria apenas um efeito de área? Áreas maiores são capazes de suportar mais espécies? Afinal, à medida que aumenta a altitude, a área total diminui, assim, existem mais espécies presentes em altitudes médias e baixas que nas altas elevações. Será?
Mas o buraco é sempre mais embaixo: nova luz sobre os gradientes de diversidade
Em 1995, o pesquisador Carsten Rahbek, da Universidade de Copenhagen, se perguntou se o conhecimento convencional sobre o padrão de gradiente de diversidade era apoiado por dados robustos. Rahbek conclui surpreendentemente que não! A maioria dos estudos, quando o esforço de amostragem era corrigido, mostrava que existiam diversos resultados para cada estudo analisado, mas parecia que um padrão emergia: a diversidade de espécies atingia um máximo em elevações intermediárias. 4
Os estudos analisados por Rahbek eram provenientes de várias cadeias de montanhas, e com vários grupos diferentes de animais e plantas. Uma hipótese para explicar porque diferentes padrões de gradientes de diversidade são encontrados no planeta é que a escala e a extensão das elevações estudadas variam muito entre os estudos. Outra hipótese é que diferentes cadeias de montanhas pertencem a regiões climáticas específicas, com histórias evolutivas próprias. A história evolutiva daquele grupo de espécies analisado nos estudos de gradiente altitudinal parece sempre ter sido um aspecto negligenciado pelos pesquisadores. 4
Hoje, os biólogos atribuem um grande número de fatores que podem explicar os gradientes altitudinais de diversidade, tais como produtividade primária do local, dinâmicas populacionais de extinção e colonização locais, tamanho da área, restrições geométricas das áreas amostradas e a história evolutiva daquele ecossistema ou das espécies analisadas. 4
A variedade de resultados encontrados entre os múltiplos estudos sugere que um único mecanismo não pode explicar todos os gradientes de diversidade observados no planeta. Estudos futuros deverão incorporar a interação entre o clima contemporâneo e o clima passado, ou deverão integrar ecologia e evolução, ou empregar novas ferramentas para entender os efeitos das mudanças climáticas sobre os padrões atuais e o futuro da biodiversidade. 4
O efeito da temperatura, entretanto, nunca foi descartado, o que gera preocupação entre os ambientalistas, pois afinal a temperatura do planeta vem aumentando consideravelmente.
A neve do Chimborazo está desaparecendo. Não apenas o mítico Chimborazo de Humboldt. Geleiras em toda a cordilheira dos Andes estão derretendo ano a ano. As consequências são potencialmente graves para as sociedades humanas na região, pois o degelo glacial é fundamental para o abastecimento de água, agricultura e geração de energia. Mas Humboldt já previra isso. Em 1844, ele listou as três maneiras pela qual a espécie humana afeta o clima:

Através das destruições das florestas, através da distribuição de água, e através da produção de grandes massas de vapor e gás nos centros industriais.” 3

O meu Chimborazo

O meu Chimborazo: o pico das Agulhas Negras. Fonte: Alex Hubner/Wikipédia

Estamos agora no sopé do pico das Agulhas Negras, o meu Chimborazo, aqui mesmo nas montanhas do Rio de Janeiro. Um planalto sem fim, repleto por gramíneas de cor ocre metálico está à minha frente. Um céu azul magenta incólume circunda 360 graus da minha visão. Um vento suave e frio me gela a garganta e me faz encapuzar um gorro de lã feito pela minha avó. O silêncio se instala mesmo numa turma de quase 40 pós-adolescentes. Estamos tragados pela beleza única da paisagem. Uma parede cinza escura de pedras, como dedos maciços e redondos se ergue sobre nosso horizonte e aponta para o infinito: Agulhas Negras e não dedos negros. Contemplo-o com se fosse a paisagem mais bela jamais vista por um ser humano. Naquele momento eu sou Alexander Von Humboldt.
De repente escuto o professor Vasconcellos:

“Um fato indiscutível é que nesses picos de montanha ocorrem espécies endêmicas, de distribuição extremamente restrita, adaptadas a estas condições atmosféricas.”

PS: Este texto é dedicado aos meus professores João Vasconcellos Neto e Maria Alice Garcia, que me levaram ao Itatiaia e aos meus colegas da turma de Ciências Biológicas.

Para saber mais
1- Humboldt, A.v. 1814–29. Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions of the New Continent, During the Years 1799–1804. 7 vols., 1 (1814), 2 (1814), 3 (1818). London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown. [Traduzidos para o inglês por Helen Maria Williams, mas existem outras traduções e versões. A tradução para o português é minha].
2- Humboldt, A.v. e Aimé Bonpland. Essay on the Geography of Plants. 2009. The University of Chicago Press. Tradução de Essai sur la géographie des plantes, 1807, Paris: Fr. Schoell. [A tradução do inglês para o português que aparece no texto é minha].
3- Wulf, A. 2015. The invention of Nature. Alfred A. Knopf, New York. [A tradução de algumas passagens para o português é minha].
4- Sanders, N. J. e Rahbek, C. 2012. The patterns and causes of elevational diversity gradients. Ecography35: 1–3.

Marcos Rodrigues
Doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/vida-das-aves-humboldt-e-eu-escalando-o-pico-das-agulhas-negras/