Por: Victor Moriyama e Eduardo Pegurier
O dia ainda é uma aurora e a Reduc iluminada
parece uma cidade (Foto: Victor Moriyama)
E amanheceu. Do lado esquerdo,
avistávamos a Refinaria Duque de Caxias, a Reduc, da Petrobrás. Com milhares de
luzes ainda acesas, sua silhueta parecia uma cidade de porte médio, exceção
feita às enormes labaredas que saem 24 horas por dia de suas chaminés. Ao
fundo, a grandiosa e maltratada baía de Guanabara com seus tons de azul. Bem à
frente, a “rampa”, o local onde a montanha de lixo de 50 metros de Gramacho
crescia. A rampa é o fim do percurso pelo qual chega a procissão de caminhões
da Comlurb, com portes diversos. Seus romeiros? Os catadores de material
reciclável que os aguardavam com avidez.
Chegamos ao portão de Gramacho às
5h da madrugada. Lá está o centro administrativo, que fica a cerca de 2 km do local do lixo. A lua
cheia brilhava. Poucos minutos depois, começaram a chegar os caminhões com os
catadores. O fotógrafo Victor Moriyama pôs-se ao trabalho. Depois que eles
passaram, os seguimos até a área de despejo do lixo e estacionamos o carro a 200 metros do centro da
ação. Não há filme ou noticiário de TV capaz de reproduzir o impacto do cenário
de Gramacho ao vivo. O conhecimento de antemão das imagens que iríamos
encontrar não amenizou o choque.
Victor subiu a colina de lixo e
desapareceu. Na base, atrás de cada caminhão da Comlurb que despeja sua carga de
detritos, há um grupo de catadores prontos para recolher tudo o que tiver valor
de mercado: vidro, pet, papelão, metais. Cada material tem seus especialistas.
A despeito da proximidade das pessoas, os caminhões e tratores operam como se
elas não estivessem lá. Ainda sob a impressão da chegada, fui salvo pelo aviso
amargo de uma catadora:
-- Esse aí vai morrer, disse ao
me ver observando, desavisado, o movimento na área de descarga. O susto me fez
perceber que ali havia leis próprias. Evitar o atropelamento era problema de
cada um, e mortes desse tipo, comuns.
Prova histórica do descaso ambiental
Gramacho operou durante 34 anos, desde 1978 até o dia 03 de junho de 2012,
quando oficialmente parou de receber lixo. Durante esse tempo, foi o maior
depósito de lixo da América Latina e o principal da área metropolitana do Rio
de Janeiro -- a 20ª maior do mundo, com 12,6 milhões de habitantes. Recebeu o
lixo dos principais municípios metropolitanos: além do próprio Rio de Janeiro,
acolheu detritos de Niterói, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Petrópolis,
Teresópolis São João de Meriti, Nilópolis, Queimados e Mesquita. Acumulou entre
60 e 80 milhões de toneladas de lixo. “É difícil avaliar a quantidade precisa,
pois até 1996 as balanças eram precárias”, conta Lúcio Vianna Alves, gerente de
Gramacho, que lá trabalha há 15 anos.
O aterro fica no município de
Duque de Caxias, a margem da Baía de Guanabara, ao lado da foz de dois pequenos
e poluídos rios, o Sarapuí e o Iguaçu. Antes, o lixo do Rio ia para o aterro da
Praia do Retiro Saudoso, no Caju, bem mais próximo ao centro da cidade, mas
também na beira da baía. Quando a capacidade deste se esgotou, o crescimento
urbano obrigou o lixo a ir mais longe para encontrar um destino.
A escolha do local foi feita pela
já extinta Fundrem (Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana).
“Na época pensaram, joga no mangue. Essa área não serve para nada”, conta
Lúcio, lembrando que na década de 70 não havia leis ou preocupação
ambiental. Entre 1978 e 1996, Gramacho recebeu cerca de 5,5 mil toneladas
de lixo por dia. Nos últimos anos, chegou a receber 9 mil toneladas/dia ou 75%
do lixo da região metropolitana. Às vésperas do seu fechamento, e substituição
pelo novo aterro sanitário de Seropédica, ainda recebia 2 mil toneladas/dia.
Lixão ou aterro?
Gramacho começou como lixão
legítimo, um depósito de lixo a céu aberto onde, sem qualquer controle, todo
tipo de detrito era depositado. Entrava o chamado resíduo classe 1, inflamável,
tóxico e causador de doenças. Incluía metais pesados e lixo hospitalar. Vinha
de qualquer lugar, casas, indústrias, hospitais, portos e aeroportos. Gramacho
não discriminava lixo nem se importava em cobri-lo.
Segundo Lúcio Alves, não havia
também qualquer tentativa de organização. Famílias moravam dentro do lixão,
crianças trabalhavam nele e os próprios catadores orientavam os caminhões de
lixo. Derivados do apodrecimento de matéria orgânica, o gás metano e o chorume
faziam estragos. O primeiro subia do solo e produzia incêndios espontâneos,
enquanto o chorume e o lixo, a cada chuva, vazavam livremente para a baía de
Guanabara.
Em 1996, Gramacho recebeu um upgrade. A área de 1,3 milhão de metros quadrados foi cercada por uma estrada periférica de5 km e barreiras para segurar
o lixo. Os resíduos passaram a ser classificados na entrada, o chorume contido
e os “vetores” -- nome técnico para ratos, baratas e outras pragas –
controlados. Os urubus continuaram frequentando a área em profusão, mas
cachorros e até cavalos foram retirados.
Em 1996, Gramacho recebeu um upgrade. A área de 1,3 milhão de metros quadrados foi cercada por uma estrada periférica de
A área de lixo passou a ser
limitada e coberta com terra. Uma vez que a água da baía foi poupada dos
vazamentos, a vegetação do mangue começou a se regenerar. Em vez de lugar
desprezado e ideal para um lixão, o mangue foi promovido a manguezal e recebeu
novas mudas, escolhidas pelo biólogo Mario Moscatelli, contratado pela Comlurb
para ajudar na recuperação. As modificações promoveram Gramacho ao que se chama
um aterro remediado ou controlado. Na prática, isso significa um lixão que
passa a ser coberto de terra.
Do alto, se avistam os contornos da Baía de
Guanabara, anfitriã do lixão. (Foto: Eduardo Pegurier
Os catadores
Entre às 6h30 e o meio-dia, é
formidável a quantidade de lixo reciclável que é separada e ensacada por tipo
de material. No entra e sai incessante de Gramacho, chegam caminhões mambembes,
semelhantes aos que trouxeram os catadores, dessa vez para comprar o seu
produto. De um total que já chegou a 6 mil catadores, restam nesses últimos
dias de Gramacho cerca de 1.200. A renda de um catador depende da sua
produtividade, o que nesse caso é igual a capacidade física. “A garotada tira
100 reais por dia”, diz Lúcio. “A média é de 50 reais”.
A maioria mora em Jardim Gramacho, o bairro que deu nome ao aterro. Lá vivem
13.700 moradores, dos quais 60% sobrevivem de atividades ligadas à
comercialização de recicláveis, que vão de catar a trabalhar nos depósitos de
sucata. De acordo com um estudo feito em maio de 2011, pelo IETS (Instituto
de Estudos do Trabalho e da Sociedade), Jardim Gramacho possui uma renda
domiciliar per capita baixa,de R$ 370 reais mensais. Do total do bairro, 43% da
população está abaixo da linha de pobreza, e mais de 16% abaixo da linha de
extrema pobreza, ou 5.800 pessoas pobres e outras 2.100 na miséria.
Gloria Cristina dos Santos, 36
anos, começou a catar no final da década de 80. Filha de pai estivador, Gloria
teve que ajudar na renda familiar e trabalhou em Gramacho com a mãe e irmãos.
“Sou catadora há 25 anos e a minha adolescência foi terrível, eu era
adolescente e catadora. Comecei a catar com 11 anos, cresci dentro de
Gramacho”, conta. “Para mim, trabalhar no aterro nunca foi desonroso, mas
sempre foi desumano". Hoje, Gloria é uma das representantes da Associação
dos Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMJG), fundada em
2004, justamente para discutir o encerramento do lixão e montar um planejamento
para dar continuidade ao trabalho dos catadores de material reciclável.
Para suavizar a transição dos
catadores, a prefeitura do Rio de Janeiro constituiu um fundo que distribuirá
cerca de 14 mil reais a cada catador cadastrado, um total de 1.719. Ela também
oferecerá aos ex-catadores do aterro treinamento em outras profissões.
O futuro
O futuro
Fechar Gramacho foi uma novela. A
primeira previsão era de que fosse encerrado em 1998. Depois, a data passou
para 2004 e foi se esticando. A desativação para valer começou em abril de
2011. Em fevereiro de 2012,
a data anunciada para o fechamento, sintomaticamente,
foi 1º de abril. Várias outras foram anunciadas até que finalmente, e sem muito
barulho, o aterro foi lacrado no último dia 03, a duas semanas da Rio+20. A ministra Izabella
Teixeira prestigiou com sua presença a cerimônia final. Nela, o prefeito
Eduardo Paes chamou Gramacho de “um crime ambiental que o Rio comete há muito
tempo”.
No entanto, a história de Gramacho não acabou. A
decomposição e o peso de no mínimo 60 milhões de toneladas de lixo, boa parte
tóxico, constituem para o solo, o lençol freático e a Baía de Guanabara um
risco que durará décadas. O terreno lacerado do aterro funciona como uma gelatina:
sofre rachaduras e está em permanente acomodação. De acordo com a Comlurb, a
cidade deu sorte. Embaixo do aterro há uma camada de argila com
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