domingo, 3 de julho de 2011

Japoneses querem nosso atum

Por: Celso Calheiros
 Embarcações e tecnologia japonesas arrendadas a indústria pesqueira potiguar está capturando espécies de atum em grandes profundidades. crédito: Demis Roussos
As diferentes espécies de atum que vivem em alto mar, a profundidades inferiores a 200m, nadavam em paz nos seus cardumes magníficos nas correntes do Atlântico Sul. Afinal, a atividade pesqueira a partir do Rio Grande do Norte capturava menos de 4 mil toneladas ao ano – o que obrigava o Brasil a respeitar cotas apenas para a pesca de espadarte, de acordo com a metodologia da Comissão Internacional para a Conservação do Atum do Atlântico (ICCAT). O volume é classificado de pouco expressivo para os industriais da pesca no Japão, em especial a Japan Tuna, uma das maiores do setor.
Como o consumo das espécies de atum no Japão é maior do que seus barcos são outorgados a pescar, os objetivos dessa indústria pesqueira passaram a incluir a cota de outros países (ou melhor, a comprar o atum que outros países pescam). Nessa hora, o Brasil apresentou um sócio de qualidades sem par. Apesar dos 8 mil quilômetros de litoral, o Brasil mas não possui uma cultura de pesca oceânica que o obrigue a obedecer quotas, apenas indicadores para pesca de atum (temos cotas apenas para o espadarte). Além do mais, o litoral do Rio Grande do Norte é estrategicamente localizado próximo a cardumes de espécies migratórias (como o atum) e o governo do estado apoia a atividade. O mercado brasileiro é um consumidor iniciante dessa espécie (em comparação com Japão, Estados Unidos e Espanha). Nossas embarcações são consideradas ultrapassadas e a técnica atrasada. É aí que chegam os emissários da Japan Tuna com uma proposta irrecusável.

Gabriel Calzavara, presidente da Atlântico Tuna, na frente de um dos dez barcos arrendados da Japan Tuna. crédito: Demis Roussos 
Em troca do arrendamento de 10 barcos atuneiros com uma tecnologia avançada, os brasileiros vão poder capturar muito mais. O plano é tirar 3 mil toneladas do mar apenas nestes barcos. A Japan Tuna, parceira na empresa criada para o arrendamento das embarcações, é o comprador preferencial. As mudanças foram grandes. Em todo ano de 2009, o Brasil capturou 4.704 toneladas de atum. O presidente da Atlântico Tuna, Gabriel Calzavara, foi nacionalista ao declarar: “O Brasil vai ocupar o seu lugar na pesca de atum”.
Seu plano é avançar sobre um estoque de atuns (albacora branca, albacora bandolim e albacora laje) que nadam em profundidades superiores, não acessados pelas embarcações brasileiras atualmente. Ele planeja deixar seus anzóis no meso pelágico, entre 200m e 500m de profundidade. 

Avaliação
O negócio tem críticos e defensores. Entre os que sentem contrariedade está José Dias Neto, analista ambiental do Ibama, que é mestre em desenvolvimento sustentável pela UnB e engenheiro de pesca. Ele tem bons argumentos: “Nunca na história dos arrendamentos para pesca, o governo brasileiro permitiu um processo tão absurdo”, afirma. E aponta aspectos incomuns nesse tipo de negócio: “A empresa arrendatária é recém criada, tem participação japonesa e não há exigência para que dois terços da tripulação sejam compostos por brasileiros”.
Vale um esclarecimento para o protesto de José Dias. Ao classificar a embarcação como de bandeira brasileira, o barco passa a ter liberdade para pescar em nossa zona econômica exclusiva (nossas 200 milhas marítimas). No entanto, os barcos da Atlântico Tuna são, em última análise, japoneses arrendado a uma empresa brasileira. E essa empresa, como José Dias realça, tem a parceria da Japan Tuna, principal cliente.
O ponto mais sensível, na visão de José Dias, é que os navios passam três meses em alto mar capturando atuns para depois transferi-los ao navio cargueiro japonês, atracado no Porto de Natal, sem que os pescados sejam desembarcados. “Pode ocorrer que não fiquemos sabendo nem quanto foi produzido e, por consequência, quanto exportamos. Isso para não falar do risco do preço subfaturado, pois o valor do atum é diferente de acordo com o tipo peixe”, considera. Os mais visados pela Atlântico Tuna são o albacora bandolim (Thunnus obesus), albacora laje (Thunnus albacares), albacora branca (Thunnus alalunga) e espadarte (Xiphias gladius).
Entre os defensores do acordo entre a gigante japonesa e a empresa potiguar, o mais ilustre é o professor Fábio Hazin, diretor do departamento de Engenharia de Pesca da Univesidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e, atualmente, presidente da ICCAT. Hazin, que detém um  currículo acadêmico de fazer inveja a muito doutor, crê na joint venture como uma oportunidade para absorção de know-how, capacitação de profissionais, geração de empregos, renda, divisas, além fonte de alimentos para o Brasil. Segundo ele, “o negócio assegura ao setor pesqueiro nacional as oportunidades que ele precisa para se desenvolver, de forma sustentável e ambientalmente responsável”.
A professora Carolina Minte-Vera, do núcleo de pesquisas em limnologia, ictiologia e aquicultura do departamento de biologia da Universidade Estdual de Maringá, é uma das especialistas da ICCAT na área de avaliação de estoques pesqueiros. Carolina argumenta que o Brasil precisou aumentar sua participação na pesca de atuns. “Caso o país não pesque sua cota pode chegar a perdê-la para outro país”, argumenta. E segue o raciocino ao lembrar que não possuímos embarcações nacionais em quantidade suficiente e adequadas para a pescaria. “Desta forma, foi necessária a joint venture”.
O avanço da indústria nos estoques pesqueiros, pelos estudos da ICCAT, não será muito diferente do que já vem ocorrendo, aponta o professor Paulo Travassos, cientista integrante do Comitê Permanente de Gestão de Atuns, do Ministério da Pesca e Aquicultura e, por dez anos, correspondente estatístico do Brasil junto à ICCAT. “Haverá um aumento substancial das capturas pelo Brasil (declaradas na ICCAT como brasileiras), mas vale lembrar que quase todos os barcos japoneses baseados em Natal já operavam no Atlântico e, portanto, não gerarão aumento da produção total das espécies neste oceano”, analisa.

Modernização 

As embarcações arrendadas são descritas como tecnologicamente avançadas em comparação às similares atracadas nos portos do Rio Grande do Norte. Os novos atuneiros lançam espinhéis a até 400 metros de profundidade (o espinhel é um fio longo que prende outros fios curtos com anzóis nas extremidades). Os concorrentes nacionais operam a até 80 metros abaixo da lâmina d’água.
Outro aspecto destacado é a capacidade para o congelamento dos pescados na própria embarcação de pesca, a 60°C negativos. A temperatura permite manter o peixe por até um ano, permitindo a escolha do melhor momento para a comercialização. Antes dessa tecnologia ao alcance dos pescadores brasileiros, a forma de manter os peixes congelados era resfriá-los por até 15 dias. São barcos com 60m de comprimento, com capacidade para permanecer três meses em alto mar e capturar 250 toneladas de peixe.
Gabriel Calzavara defende o negócio de arrendamento pela oportunidade que geram de absorção tecnológica. “Só os japoneses pescam nessa profundidade e é com eles que precisamos aprender”, afirma. Ele fala com a experiência que adquiriu na Norpeixe, empresa do setor que, no passado, arrendou embarcações espanholas e hoje possui um sócio espanhol.

  Embarcações podem congelar pescados a menos 60°C e ficar em alto mar por até três meses. crédito: Demis Roussos
 Com relação à pequena quantidade de brasileiros a bordo (apenas quatro, atualmente), Calzavara conta que desenvolveu uma programação para treinamento que, progressivamente, colocará mais conterrâneos em busca desses grandes peixes migratórios. “Temos acordos com o governo e será instalado um centro de pescadores em alto-mar, em Santa Cruz, no litoral potiguar”, anuncia. 
Calzavara frisa, ao falar sobre a Atlântico Tuna, que procura um estoque de peixes ainda não acessado por navios brasileiros. E também reforça que sua atividade será sustentável, seguirá as recomendações dos órgãos de controle do meio ambiente e também da ICCAT. “A partir da Norpeixe (sua outra empresa), temos tradição de seguir todas as regras do setor e de manter um diálogo a universidade”.
No mundo 
Discurso e tecnologia, mercado e possibilidade de crescimento da indústria da pesca criaram uma legião de admiradores e entusiastas do projeto Atlântico Tuna. Os críticos nacionais, por vezes, são chamados de alarmistas. Na imprensa internacional, a visão é diferente. São comuns editoriais na grande imprensa norte-americana  (como no The New York Times) apontando a crise do atum japonês como um problema criado pela indústria de pesca japonesa. 
A visão da imprensa no Japão também é crítica (como registra o The Japan Times Online). Até porque foi lá que o rei dos atuns, o atum-rabilho (Thunnus thynnus) deixou de ser encontrado e teve sua pesca suspensa. O quadro ficou pior depois do desastre nuclear em Fukushima. A indústria de pesca japonesa teve, por necessidade de sobrevivência, que procurar parcerias e acordos em outros países – como previu a bióloga Leandra Gonçalves, coordenadora de projetos de Greenpeace.
 
Ex-ministra da Pesca Ideli Salvati chegou a receber dirigentes da Japan Tuna, em missão de reconhecimento em um país aberto aos negócios
Leandra Gonçalves critica as políticas públicas que estimulam o aumento na quantidade de pescados de uma mesma espécie. Ela cita a Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), feita em 2006, que revela a grande diversidade - mas estoques pequenos - das espécies encontradas no litoral brasileiro. “80% dos estoques pesqueiros comerciais são sobre explorados, isto é, pescados além do limite de recuperação desses próprios estoques”.
O presidente da Atlântico Tuna, Gabriel Calzavara, tem conhecimento do Revizee e concorda com os dados, com uma ressalva: “Os números apontam espécies litorâneas. Nós pescamos grandes espécies migratórias. Esses peixes migratórios não são de nenhum país, só ganham alguma nacionalidade quando capturados. Ganham a nacionalidade da bandeira do barco de pesca”.
Na avaliação de Leandra, falta governança. O Ministério da Pesca e Aquicultura passou a ver apenas o aspecto desenvolvimentista, enquanto o Ministério do Meio Ambiente preocupa-se, sozinho, com a conservação. E para piorar, o ICCAT não tem sido um bom regulador. “O ICCAT não ouve seu próprio corpo técnico e seu histórico é de instituição política, sensível a pressões da indústria pesqueira”, afirma.
Para piorar, a indústria pesqueira nem sempre está nas páginas de economia. Por vezes, aparece nas denúncias sobre mau uso de recursos públicos. Em 2001, a Comissão Pastoral da Pesca e o Ministério Público Federal citaram o economista Gabriel Calzavara como possível envolvido no desvio de verba destinada ao financiamento de pequenas embarcações em Pernambuco e na Paraíba (como publicado nas revistas Época, IstoÉ  e no Diário de Pernambuco). Gabriel Calzavara trabalhou como consultor, de 1995 a 1998. Em seguida, foi para o ministério da Agricultura ocupar o cargo de diretor da Pesca e Aquicultura (época em que não existia o Ministério da Pesca e Aquicultura). “Essas denúncias foram todas investigadas e nunca fui responsabilizado. São denúncias vazias. Ocorrem com qualquer pessoa que ocupe um cargo público”, rebate.
http://www.oeco.com.br/reportagens/25152-japoneses-querem-nosso-atum

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